Concebida em 10 de junho de 2020, a lei 14.010, deste mesmo ano entrou em vigor no dia 12 deste mesmo exercício para o fim de dispor sobre o Regime Jurídico Emergencial e Transitório das relações jurídicas de Direito Privado (RJET) no período da pandemia do coronavírus (covid-19).
No que se refere às disposições da novel legislação aplicável aos condomínios, tem-se preponderantes e já vigentes os artigos 12 e 13, já que entendeu o presidente da República, no exercício pleno de seu direito constitucional de veto1, manifestado como ato de discordância do chefe do Poder Executivo Federal com o disposto no corpo do art. 11, obstaculizar o ingresso no ordenamento jurídico pátrio do referido dispositivo, o que o fez com as respectivas razões delineadas2.
Restando vigentes, portanto, o art. 12 e o art. 13, como normas incidentes à gestão de condomínios, daquele primeiro decorre o comando legal no sentido de que a assembleia condominial, inclusive para os fins dos arts. 1.349 e 1.350 do Código Civil, e a respectiva votação poderão ocorrer, em caráter emergencial, até 30 de outubro de 2020, por meios virtuais, caso em que a manifestação de vontade de cada condômino será equiparada, para todos os efeitos jurídicos, à sua assinatura presencial.
Ainda nesse mesmo artigo 12, no bojo do seu parágrafo único, tem-se que, não sendo possível a realização de assembleia condominial para o fim de eleger o novo síndico, os mandatos do representante legal do condomínio vencidos a partir de 20 de março de 2020 seguem prorrogados até 30 de outubro de 2020.
Por seu turno, o artigo 13 impõe o caráter de obrigatoriedade da medida de regular prestação de contas, referindo-se, nesse sentido, ao indissociável e inescapável dever de publicidade e de transparência do síndico, em relação aos seus atos de gestão administrativa e financeira do condomínio, sob pena de destituição do cargo.
De se notar que em relação a esse múnus do responsável legal do condomínio, no sentido de tornar conhecidas dos condôminos os registros e apontamentos próprios das contas condominiais, há em parte uma relevante inovação legislativa, vez que o art. 1.348 do Código Civil Brasileiro dispunha inserir-se no âmbito da competência do síndico o ato de “prestar contas à assembleia, anualmente e quando exigidas”.
Assim é que o Código Civil Brasileiro, seguindo a esteira da Lei Geral de Condomínios de 1964, se limitava a tratar o tema da prestação de contas como um elemento próprio da “competência” do síndico, enquanto o art. 13 da lei 14.010 de 2020 afirma se tratar, doravante, de dever jurídico, conceitos jurídicos próximos, porém distintos.
É bem verdade que a palavra competência, tanto na língua portuguesa, como em seu sentido jurídico, possui diversos, múltiplos, porém não infinitos significados; assim é que sob a égide do direito público, e segundo o magistério de Fernanda Marinela, observa-se que se deve entender por competência “o conjunto de atribuições das pessoas jurídicas, órgãos e agentes públicos, fixados pelo direito positivo, representando a esfera de atuação de cada um deles”3; no campo do direito processual, deve-se entender a competência como a delimitação da jurisdição, valendo dizer, o espaço em que cada jurisdição deve ser aplicada e o alcance do poder judicial por lei distribuído, assistindo razão a Theodoro Júnior ao afirmar que “se todos os juízes tem jurisdição, nem todos, porém, se apresentam com competência para conhecer e julgar determinado litígio. Só o juiz competente tem legitimidade para fazê-lo”4.
No entanto, o significado que o legislador civil entendeu necessário conferir ao termo competência, quando a este se referiu, cuidando do rol de itens associados ao corpo de atribuições do síndico, a nosso ver, foi um dos mais simples, e que não demanda maior dificuldade para sua compreensão ou intelecção, mesmo aquele extraído de um dos plúrimos resultados passíveis de extração por meio do exercício hermenêutico da interpretação gramatical.
Isso porque, segundo a dicção do dicionário Houaiss da Língua Portuguesa, deve-se compreender competência como o “poder detido por um indivíduo, em razão do seu cargo ou função, de praticar atos próprios deste ou desta”5, este, portanto, o significado da competência atribuída pelo Código Civil ao síndico.
Tinha o síndico, portanto, até o advento da lei 14.010 de 2020, uma prerrogativa, uma potestade, ou como diz Houaiss, um “poder” próprio, intrínseco e imanente ao seu cargo de “prestar contas”. A esse poder, opunha-se o direito dos condôminos, por demais lícito e legítimo de ter acesso às informações de caráter administrativo e financeiro que podem impactar os recursos econômicos, materiais e humanos, dentre outros aspectos que compõe as diversas nuances da gestão condominial.
E tão certo é esse direito dos condôminos de ter acesso às contas que, não raro, diante dos obstáculos criados por determinados síndicos, resistentes e refratários em tornar públicas as contas do condomínio, tornou-se por demais comum no âmbito da judicialização das questões condominiais, a propositura de ação assim intitulada “de prestação de contas”, direito este que não se vê reconhecido por um único e singular condômino, senão pela assembleia, órgão regularmente legitimado para a propositura da referida ação6, bem como o único colegiado que se encontra apto legalmente para aprovar ou reprovar as contas prestadas pelo síndico, procedimento que pode até mesmo ser delegado para a administradora de condomínio, desde que sob a supervisão e acompanhamento pessoal do síndico, no que deve ser entendido como ato de sua pessoal responsabilidade7.
Destarte, conquanto por força do caráter consuetudinário, se tenha compreendido o ato de prestação de contas, em relação à gestão do condomínio, como sendo uma obrigação, mesmo um “dever jurídico” ao síndico atribuído, verdade é que a lei jamais assim o afirmou, senão agora, e de forma peremptória, quando tal dúvida se faz espancada pela cristalina dicção da nova lei, em particular quando assevera ser “obrigatória, sob pena de destituição do síndico, a prestação de contas regular de seus atos de administração”.
1 Conquanto o projeto de lei 11.70/20 tivesse sido aprovado pelas Casas Legislativas do Congresso Nacional (Câmara dos Deputados e Senado Federal), previsto na Constituição Federal (CF) no artigo 66 e seus parágrafos, com regramento interno no Regimento Comum (RCCN), artigos 104 a 106-D da Resolução 1 do Congresso Nacional de 1970.
2 Razões do Veto Presidencial: “A propositura legislativa, ao conceder poderes excepcionais para os síndicos suspenderem o uso de áreas comuns e particulares, retira a autonomia e a necessidade das deliberações por assembleia, em conformidade com seus estatutos, limitando a vontade coletiva dos condôminos.”
3 MARINELA, Fernanda. Direito Administrativo. Niterói: Impetus, 2012.
4 THEODORO JÚNIOR, Humberto. Curso de Direito Processual Civil – Teoria geral do direito processual civil e processo de conhecimento. 51. ed. Rio de Janeiro: Forense. 2010.
5 HOUAISS, Antônio. Dicionário da Língua Portuguesa. São Paulo: Editora Objetiva, 2009. Verbete: “competência”.
6 No âmbito do STJ, houve o ministro Villas Bôas Cueva destacar que tanto a antiga Lei 4.591/1964 estabelecia que “compete” ao síndico prestar contas à assembleia dos condôminos, assim como o art. 1.348, inciso VIII, do Código Civil dispõe que “compete ao síndico” prestar contas à assembleia, anualmente e quando exigidas. “Assim, por expressa vedação legal, o condômino não possui legitimidade para propor ação de prestação de contas, porque o condomínio, representado pelo síndico, não teria obrigação de prestar contas a cada um dos condôminos, mas a todos, perante a assembleia”, afirmou o relator. Segundo o ministro, o condômino não pode se sobrepor à assembleia, órgão supremo do condomínio, cujas deliberações expressam “a vontade da coletividade dos condôminos sobre todos os interesses comuns”. “Na eventualidade de não serem prestadas as contas, assiste aos condôminos o direito de convocar assembleia, como determina o artigo 1.350, parágrafo 1º, do Código Civil”.
7 “APELAÇÃO CÍVEL. AÇÃO DE PRESTAÇÃO DE CONTAS. CONDÔMINA QUE PRETENDE A PRESTAÇÃO DE CONTAS POR PARTE DA ADMINISTRADORA DO CONDOMÍNIO, TENDO AQUELAS SIDO APROVADAS EM ASSEMBLEIA CONDOMINIAL. ILEGITIMIDADE ATIVA QUE SE RECONHECE, ANTE A AUSÊNCIA DE VÍNCULO JURÍDICO ENTRE AS PARTES. A PRESENTE AÇÃO, INCLUSIVE, NÃO É A VIA ADEQUADA PARA A PARTE PRETENTER A ANULAÇÃO DA ATA DA ASSEMBLEIA DE CONDOMINOS QUE RATIFICOU A GESTÃO DA ADMINISTRADORA CONTRATADA PELO CONDOMÍNIO. SENTENÇA MODIFICADA DE OFÍCIO, PARA RECONHECER A ILEGITIMIDADE ATIVA PARA A CAUSA E JULGAR O PROCESSO EXTINTO. 1. Não se nega o direito da recorrente de ter acesso aos pormenores referentes à administração do condomínio em que reside, inclusive comprovantes de despesas, nos termos de sua narrativa. 2. Todavia, há de se reconhecer aqui a inviabilidade processual relativa à ilegitimidade da apelante em demandar a administradora ré, o que ocorreria, in casu, ainda que a parte acionasse o condomínio, diante do documento presente no índice 00068, em que consta a aprovação das contas da administradora em assembleia de condôminos, conforme a jurisprudência desta Corte. 3. Sentença modificada de ofício, para julgar o processo extinto, sem resolução do mérito, ante a ilegitimidade ativa para a causa.” (Apelação Cível 0014780-14.2009.8.19.0037 – Décima Segunda Câmara Cível – Des. Rel. Cherubin Schwartz)
Fonte https://www.migalhas.com.br/depeso/328900/a-obrigatoriedade-da-prestacao-de-contas-do-sindico-frente-ao-disposto-na-lei-14-010-de-2020